Em
Porno, não muito diferente de outras canções do Arcade Fire, visto também que todas estão intimamente interligadas,
o mundo como conhecemos, cheio de aspectos naturalmente doentios, é destruído,
feito em pedaços, bem como o instrumento de percussão de William Butler (HAUAHUAHU).
Nos últimos instantes do Porno Reflektor
Tapes, como em praticamente todos os shows do Arcade Fire, o grito final
revolucionário de Rebellion (Lies) se contrasta perfeitamente com a
insistência constante do menino em expressar suas emoções (e não é pra menos,
não é? Rebellion mata qualquer um do
coração, o grito chega a ser uma oração, um alívio, um rito de passagem
transcendente). Devo dizer que aquilo representa não só uma via de expressão
dele, do calor que envolve estar onde ele está e sentir o que ele sente, mas
também o grito incessante e as emoções incontidas de todos nós.
Voltando
um pouco ao início, é até difícil falar de uma música de forma isolada - estado
de epifania meu - mas vamos tentar. Em Porno, pegarei certos pontos chaves que
me foram ocorrendo ao longo dessa trajetória que é conhecer e viajar com o
Arcade Fire. Muita coisa mudou, muitas compreensões afloraram, muitos frutos
nasceram, adormeceram, enfim... Tais aspectos chaves são: a quebra da estrutura
do mundo como conhecemos; a inversão de valores característica da era moderna
(isso não se deve a uma ideia conservadora, muito pelo contrário); e a
estranheza de pertencer a um mundo que não lhe pertence e/ou não lhe torna
pertencente. E por que eu digo que o Arcade Fire quer quebrar essa estrutura do
mundo?
Analisando
sob um aspecto geral, o próprio Reflektor é uma evolução das demais críticas
fortíssimas presentes desde o Funeral
até o The Suburbs. Digamos que ele é
um álbum meio forever alone, devido as suas especificidades, mas essa solidão
não é restrita pois seus elementos estão totalmente intricados com conceitos
dos álbuns anteriores.
O
Reflektor pressupõe que tiremos nossas máscaras, que não tenhamos medo, (ou
tenhamos o mínimo de vergonha na cara kkkk) para sair de baixo dos cobertores.
O véu de mentiras exposto Rebellion não é tão diferente do véu de mentiras que
estabelecemos em Reflektor. A diferença se constitui apenas no foco, Rebellion
ainda possui um aspecto real, vivencial, presente... No Reflektor nossas
máscaras são ainda mais macabras devido à era da internet, da informação, do
anonimato, um dos esconderijos mais fatais do ser humano, e o mais forte da era
tecnológica.
Porno
evidencia isso ao expressar sua revolta em como aspectos existenciais tão
profundos como o amor e o sexo foram banalizados e reduzidos ao estado de coisa
e à objetificação. Como se esqueceram de que o amor não é só o prazer de uma
noite, ao ficar com alguém que nem se conhece, ou ver um vídeo seco e sem alma,
mas a própria espiritualidade de lidar com o
ser de uma pessoa em sua totalidade, em seus vícios e virtudes.
“Você pode chorar que eu não vou
Você pode gritar que eu não vou”
Ele mostra estar pronto para lidar com todos os aspectos constituintes de sua companheira, e ao decorrer da música demonstra em como os meninos, agora presos na pornografia, na objetificação, não só da mulher, mas também como de quase tudo que encontra pela frente, destroem esse amor. Eles não são capazes de conhecer o verdadeiro amor, que é se doar, na saúde e na doença (Crown of Love), imersos nessa onda, reforçada pela refletive age, da pornografia, objetificação e coisificação do mundo.
Podemos não ver isso tão óbvio no reflektor tapes, pois, o vídeo mostra
exatamente o contrário, ao fazer a tuor pelos lugares por onde o Arcade Fire
passou, as pessoas que encontraram, as diferentes culturas e subjetividades
quais entraram em contato, o destaque para tamanha multiplicidade do mundo. É
para onde a banda quer que direcionemos o nosso olhar, para as coisas reais. A
mistura de instrumentos diversos no clipe, a tentativa de incorporar isso na
própria alma da banda, meio que trazendo para a própria personalidade do grupo,
a subjetividade do mundo. Se observarmos direitinho, o clipe é mostrado numa tela dentro de uma tela, e somos
tentados a escolher por qual telas olhar. Bom, se você tenta perceber as duas
em seus múltiplos aspectos, acredito estar no caminho certo. Nenhuma é menos
real do que a outra, no entanto, há uma diferença notável, a tela menor quase
nunca fica colorida, e o aspecto dela é sempre mais triste do que a tela maior,
perceba a expressão de Régine sempre cabisbaixa, e o modo como Win implora ao
cantar. “ É, algo está errado. ” O
Arcade Fire pede que olhemos para o mundo sem o véu de maquiagem que insistimos
em colocar, do mesmo modo que pede à Régine que também tire sua maquiagem, pois
ele precisa vê-la como ela realmente é, e também ouvir seus suspiros (os
verdadeiros), não àquela coisa insensata e mentirosa que os meninos costumam
ouvir nos vídeos pornôs, algo que também magoa Régine, visto que essa se tornou
a forma como a maioria das pessoas estruturaram suas relações, relações líquidas
e imediatas. (p.s não que mulheres também
não possam ser vazias e verem vídeos pornôs, tá? Mas isso é muito mais
frequente no comportamento dos garotos, aliás, vivemos num mundo machista, onde
mulheres não são estimuladas a afirmar sua sexualidade. Para muitas de nós pornografia
está fora de questão; algumas, devido à educação e outras, por não gostarem se
se ver como objeto sexual).
Garotinhos com seus pornôs
Oh, eu sei como eles te machucaram
Oh, eu sei como eles te machucaram
Eles não sabem do que nós
sabemos
Nunca saberão do que nós sabemos
Nunca saberão do que nós sabemos
Ao tornarmos algo como o Amor em coisa, nos
distanciamos de tudo, tudo o que é real, já não somos mais capazes de saber, de
conhecer o mundo em sua essência mágica, já não queremos nos comprometer, nos
machucar ao lidar com a alma de alguém – que muito pelo contrário – não é
composta apenas de plenitudes. Como li, ontem mesmo, numa passagem de 1984 (George Orwell), Winston pergunta a
Júlia “Agora que está vendo como eu de fato sou, é capaz de continuar olhando
para mim? ”, mas poxa vida, o Roger Waters pergunta a mesma coisa em The Final
Cut “e se eu te mostrasse meu lado negro, você ainda me abraçaria esta noite? ”...
o Arcade Fire nos faz, precisamente, pensar exatamente nisso. “todo homem que você conhece teria ido embora
ao dizer “vá”, mas ele, ele não vai, porque ele, como Júlia para com
Winston, está disposto a amar Régine por completo, inclusive o seu lado negro,
seus demônios, suas fraquezas. O Arcade Fire pergunta em Porno se seremos nós,
capazes de encararmos uns aos outros dessa maneira, se seremos capazes de amar e
viver o mundo dessa maneira... ele chega a assumir, até, o sentimento do mundo
inteiro ao se colocar no papel daqueles que machucam, mostrando que até aqueles
que não esperam ser esse tipo de pessoa, podem acabar sendo, de algum modo, por
estarem submersos também no mundo “natural” que conhecemos, este mundo de
reflexos e irrealidades.
Eu sei que
eu te machuquei
Eu não vou negar
Quando eu tento alcançar você
Você diz: eu superei isso
Eu não vou negar
Quando eu tento alcançar você
Você diz: eu superei isso
É claro que Régine não superou
nada, como nenhuma de nós superamos, como o próprio Win não superou. Nenhum de
nós deveríamos estar acostumados a viver num mundo como este. “Me faz sentir como se tivesse algo errado
comigo”... chegamos realmente a pensar que somos nós os loucos, aliás, a
maioria caminha para o mesmo lado. As relações humanas caminham dessa forma
líquida e imediata, onde ninguém realmente se conhece, onde todos querem ser
amados, mas correm com o medo letal do “eu te amo”, trocam o eu te amo pelo “quero
te conhecer melhor” e isso é tão assustador. Posteriormente, o “quero te
conhecer melhor” nem isso mais é, é o “quero ficar com você”, e se beijam e
beijam e beijam, o beijo vazio, desprovido de sentido e significado, desprovido
de sentimento, desprovido de realidade, de desejo, de compaixão.... no entanto,
todos caminham felizes, e reclamam se isto lhe falta.
Mas este é
o mundo deles, para onde podemos ir?
Ele
admite, inclusive, que eles também sabem muito pouco, mas o que sabem é devido
nada mais nada menos que o aspecto mais real da nossa existência – o sentimento
– pois o corpo transborda. Fazendo o
elo imprescindível com The Suburbs – a música – podemos ver que anteriormente
já existia esse medo dentro dele de deixar o sentimento para trás.
Às vezes, eu não posso acreditar, estou
ultrapassando o sentimento.
A
correria é um fenômeno frequente nas músicas do AF, vide o Neon Bible (Keep the car running, Wasted Hours, Sprawll II), etc.”. Ao viver no modo acelerado como
vivemos corremos o risco de deixar realmente o sentimento de lado, e não enxergarmos
as coisas que de fato importam. Não é à toa que Neon Bible (My body is a cage)
termina com outro grito magistral de redenção dizendo que o corpo (aquele mais suscetível
aos desejos carnais destrutivos e neste sentido está associado àquilo que nos
corrompe) deve se submeter à nossa mente que segura a chave, ou seja, a
resposta está dentro de nós, na nossa capacidade de interpretar o mundo em que
vivemos e a nós mesmos, e de vencer essa natureza hostil construída ao longo de
nossa história. O carro, esta máquina indestrutível que construímos ao
inserir-nos na era moderna, não pode ir, e não vai, onde o sentimento aponta.
Em In the backseat (funeral), já
estamos cansados de dirigir, mas ainda nos dispomos a correr (stop now before it’s too late), em The Suburbs
o carro já se encontra estacionado. O progresso parece ter engolido qualquer
capacidade de continuar dirigindo nossas vidas, no entanto permanecemos a
dirigir as máquinas do progresso, e não deveríamos nos surpreender pelas
emoções estarem mortas. “Não é de se
admirar que você se sinta tão estranho. ” (Spraw I). Ele se
sente estranho, pois o sentimento, evidentemente ainda não
morreu, mas pode estar prestes a morrer.
nos meus
sonhos ainda estamos gritando
E correndo pelo jardim
E correndo pelo jardim
Posteriormente,
quase no fim, ele deixa claro como o homem tem se tornado essa criatura
desprezível que se é, claro que não do nada, mas através das coisas que
aprende, nesse mundo alheio das coisas verdadeiras. É notório o Arcade Fire
jamais colocar a mulher, crianças e mesmo idosos no mesmo patamar do homem
moderno. Eles não colocam. Acredito eu que seja por afirmação de que é ao homem
que é dado o poder, e por isso este
se encontra tão mais corrompido que os outros. Em No cars go, ele chama aqueles que ainda sentem – e eu tive um sonho
clássico com o seu chamado OMG! (between the click of the light and the start of the
dream) – e são estes: mulheres, crianças e idosos, a parcela
mais frágil (e mais forte) do contrato social.
E os garotos ficam aprendendo
Um monte de merda egoísta
Até que a garota
Não aceite mais
Um monte de merda egoísta
Até que a garota
Não aceite mais
(Antichrist Television Blues) já nos adianta quem é o homem moderno do The
Suburbs e o que este homem faz com os futuros garotos resgatados em Porno no
Reflektor. Oh, não, na verdade, Rebellion, antes mesmo, já traz isso. Aliás (Scare your son, scare your daughter). As duas
músicas merecem e muito uma análise única e exclusiva, mas não tem como mesmo como
não as citar aqui, sem fazer os elos, pois está mesmo tudo interligado. Em
Antichrist Television Blues, o foco no homem de bem, é fortíssimo, e o que este
homem faz com o que Deus lhe deu.
Caro Deus,
eu sou um bom homem cristão
Sou seu garoto, eu sei que você entende.
Sou seu garoto, eu sei que você entende.
E a garota, como em Porno, é a vítima central da
música. O nosso pássaro na gaiola. O enfeite clássico, a atração máxima, a
criança aprisionada. Ao fazer da sua garota uma estrela, ela se torna o reflexo
perfeito que é esse deus, esse deus do homem moderno, que muito mais escraviza
as pessoas do que as liberta, e isso não é um ataque ao cristianismo,
precisamente, mas ao que fizeram do cristianismo. O que homem fez com sua
religião e o que fez com as mulheres que deveriam ser suas companheiras e não
seus brinquedos. A música mostra, de maneira dolorosa, como não só o “namorado”,
mas também como o próprio pai trata da filha.
Caro Deus,
você me mandará uma criança?
Oh Deus, você me mandará uma criança?
Porque eu quero colocá-la na tela da TV
Então o mundo poderá ver o que sua verdadeira palavra significa
Oh Deus, você me mandará uma criança?
Porque eu quero colocá-la na tela da TV
Então o mundo poderá ver o que sua verdadeira palavra significa
O homem que pede uma criança em Antichrist television
blues, no entanto, não é o mesmo homem que pede por uma filha na música The
suburbs. Em The suburbs ele canta, precisamente, o mesmo que canta em Porno, a
súplica por um mundo melhor, por um mundo onde sua filha possa ver ainda alguma
beleza e não ser vítima desses homens, garotos insensatos e insensíveis de
Porno e Antichrist television blues (a súplica infinita de um homem mentiroso,
que mente não só para o mundo e para Deus, mas principalmente para si próprio),
ele pede a filha, símbolo do seu compromisso com Deus, ao mesmo tempo que pede (inconscientemente ou conscientemente)
uma faca, para que possa matá-la. E ele realmente mata, como podemos ver, não
só em Porno, mais especificamente – não poderíamos esquecer – em Joan
of Arc.
Primeiro
eles te amam
Então eles te matam
Então eles te matam
(*)
Então me
diga Senhor, eu sou o Anti-cristo?
Isso
tudo nos decepciona, nos magoa, e por vezes até nos imobiliza. Ao final de
Porno, Win então confirma que realmente não superou, no entanto, continuamos a
seguir em frente... em frente seguimos.
You say love is real
Like a disease
Come on tell me please
I'm not over it.
Like a disease
Come on tell me please
I'm not over it.
15.06.2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário