PORNO - Me faz sentir como se algo estivesse errado comigo - Você me ensinou a escrever

junho 15, 2017

PORNO - Me faz sentir como se algo estivesse errado comigo


Em Porno, não muito diferente de outras canções do Arcade Fire, visto também que todas estão intimamente interligadas, o mundo como conhecemos, cheio de aspectos naturalmente doentios, é destruído, feito em pedaços, bem como o instrumento de percussão de William Butler (HAUAHUAHU). Nos últimos instantes do Porno Reflektor Tapes, como em praticamente todos os shows do Arcade Fire, o grito final revolucionário de Rebellion (Lies) se contrasta perfeitamente com a insistência constante do menino em expressar suas emoções (e não é pra menos, não é? Rebellion mata qualquer um do coração, o grito chega a ser uma oração, um alívio, um rito de passagem transcendente). Devo dizer que aquilo representa não só uma via de expressão dele, do calor que envolve estar onde ele está e sentir o que ele sente, mas também o grito incessante e as emoções incontidas de todos nós.
Voltando um pouco ao início, é até difícil falar de uma música de forma isolada - estado de epifania meu - mas vamos tentar. Em Porno, pegarei certos pontos chaves que me foram ocorrendo ao longo dessa trajetória que é conhecer e viajar com o Arcade Fire. Muita coisa mudou, muitas compreensões afloraram, muitos frutos nasceram, adormeceram, enfim... Tais aspectos chaves são: a quebra da estrutura do mundo como conhecemos; a inversão de valores característica da era moderna (isso não se deve a uma ideia conservadora, muito pelo contrário); e a estranheza de pertencer a um mundo que não lhe pertence e/ou não lhe torna pertencente. E por que eu digo que o Arcade Fire quer quebrar essa estrutura do mundo?
Analisando sob um aspecto geral, o próprio Reflektor é uma evolução das demais críticas fortíssimas presentes desde o Funeral até o The Suburbs. Digamos que ele é um álbum meio forever alone, devido as suas especificidades, mas essa solidão não é restrita pois seus elementos estão totalmente intricados com conceitos dos álbuns anteriores.
O Reflektor pressupõe que tiremos nossas máscaras, que não tenhamos medo, (ou tenhamos o mínimo de vergonha na cara kkkk) para sair de baixo dos cobertores. O véu de mentiras exposto Rebellion não é tão diferente do véu de mentiras que estabelecemos em Reflektor. A diferença se constitui apenas no foco, Rebellion ainda possui um aspecto real, vivencial, presente... No Reflektor nossas máscaras são ainda mais macabras devido à era da internet, da informação, do anonimato, um dos esconderijos mais fatais do ser humano, e o mais forte da era tecnológica.
Porno evidencia isso ao expressar sua revolta em como aspectos existenciais tão profundos como o amor e o sexo foram banalizados e reduzidos ao estado de coisa e à objetificação. Como se esqueceram de que o amor não é só o prazer de uma noite, ao ficar com alguém que nem se conhece, ou ver um vídeo seco e sem alma, mas a própria espiritualidade de lidar com o ser de uma pessoa em sua totalidade, em seus vícios e virtudes.
“Você pode chorar que eu não vou
Você pode gritar que eu não vou”

Ele mostra estar pronto para lidar com todos os aspectos constituintes de sua companheira, e ao decorrer da música demonstra em como os meninos, agora presos na pornografia, na objetificação, não só da mulher, mas também como de quase tudo que encontra pela frente, destroem esse amor. Eles não são capazes de conhecer o verdadeiro amor, que é se doar, na saúde e na doença (Crown of Love), imersos nessa onda, reforçada pela refletive age, da pornografia, objetificação e coisificação do mundo.
            Podemos não ver isso tão óbvio no reflektor tapes, pois, o vídeo mostra exatamente o contrário, ao fazer a tuor pelos lugares por onde o Arcade Fire passou, as pessoas que encontraram, as diferentes culturas e subjetividades quais entraram em contato, o destaque para tamanha multiplicidade do mundo. É para onde a banda quer que direcionemos o nosso olhar, para as coisas reais. A mistura de instrumentos diversos no clipe, a tentativa de incorporar isso na própria alma da banda, meio que trazendo para a própria personalidade do grupo, a subjetividade do mundo. Se observarmos direitinho, o clipe é mostrado numa tela dentro de uma tela, e somos tentados a escolher por qual telas olhar. Bom, se você tenta perceber as duas em seus múltiplos aspectos, acredito estar no caminho certo. Nenhuma é menos real do que a outra, no entanto, há uma diferença notável, a tela menor quase nunca fica colorida, e o aspecto dela é sempre mais triste do que a tela maior, perceba a expressão de Régine sempre cabisbaixa, e o modo como Win implora ao cantar. “ É, algo está errado. ” O Arcade Fire pede que olhemos para o mundo sem o véu de maquiagem que insistimos em colocar, do mesmo modo que pede à Régine que também tire sua maquiagem, pois ele precisa vê-la como ela realmente é, e também ouvir seus suspiros (os verdadeiros), não àquela coisa insensata e mentirosa que os meninos costumam ouvir nos vídeos pornôs, algo que também magoa Régine, visto que essa se tornou a forma como a maioria das pessoas estruturaram suas relações, relações líquidas e imediatas. (p.s não que mulheres também não possam ser vazias e verem vídeos pornôs, tá? Mas isso é muito mais frequente no comportamento dos garotos, aliás, vivemos num mundo machista, onde mulheres não são estimuladas a afirmar sua sexualidade. Para muitas de nós pornografia está fora de questão; algumas, devido à educação e outras, por não gostarem se se ver como objeto sexual).

Garotinhos com seus pornôs
Oh, eu sei como eles te machucaram
Eles não sabem do que nós sabemos
Nunca saberão do que nós sabemos

            Ao tornarmos algo como o Amor em coisa, nos distanciamos de tudo, tudo o que é real, já não somos mais capazes de saber, de conhecer o mundo em sua essência mágica, já não queremos nos comprometer, nos machucar ao lidar com a alma de alguém – que muito pelo contrário – não é composta apenas de plenitudes. Como li, ontem mesmo, numa passagem de 1984 (George Orwell), Winston pergunta a Júlia “Agora que está vendo como eu de fato sou, é capaz de continuar olhando para mim? ”, mas poxa vida, o Roger Waters pergunta a mesma coisa em The Final Cut “e se eu te mostrasse meu lado negro, você ainda me abraçaria esta noite? ”... o Arcade Fire nos faz, precisamente, pensar exatamente nisso. “todo homem que você conhece teria ido embora ao dizer “vá”, mas ele, ele não vai, porque ele, como Júlia para com Winston, está disposto a amar Régine por completo, inclusive o seu lado negro, seus demônios, suas fraquezas. O Arcade Fire pergunta em Porno se seremos nós, capazes de encararmos uns aos outros dessa maneira, se seremos capazes de amar e viver o mundo dessa maneira... ele chega a assumir, até, o sentimento do mundo inteiro ao se colocar no papel daqueles que machucam, mostrando que até aqueles que não esperam ser esse tipo de pessoa, podem acabar sendo, de algum modo, por estarem submersos também no mundo “natural” que conhecemos, este mundo de reflexos e irrealidades.

Eu sei que eu te machuquei
Eu não vou negar
Quando eu tento alcançar você
Você diz: eu superei isso

            É claro que Régine não superou nada, como nenhuma de nós superamos, como o próprio Win não superou. Nenhum de nós deveríamos estar acostumados a viver num mundo como este. “Me faz sentir como se tivesse algo errado comigo”... chegamos realmente a pensar que somos nós os loucos, aliás, a maioria caminha para o mesmo lado. As relações humanas caminham dessa forma líquida e imediata, onde ninguém realmente se conhece, onde todos querem ser amados, mas correm com o medo letal do “eu te amo”, trocam o eu te amo pelo “quero te conhecer melhor” e isso é tão assustador. Posteriormente, o “quero te conhecer melhor” nem isso mais é, é o “quero ficar com você”, e se beijam e beijam e beijam, o beijo vazio, desprovido de sentido e significado, desprovido de sentimento, desprovido de realidade, de desejo, de compaixão.... no entanto, todos caminham felizes, e reclamam se isto lhe falta.

Mas este é o mundo deles, para onde podemos ir?

Ele admite, inclusive, que eles também sabem muito pouco, mas o que sabem é devido nada mais nada menos que o aspecto mais real da nossa existência – o sentimento – pois o corpo transborda. Fazendo o elo imprescindível com The Suburbs – a música – podemos ver que anteriormente já existia esse medo dentro dele de deixar o sentimento para trás.

Às vezes, eu não posso acreditar, estou ultrapassando o sentimento.

A correria é um fenômeno frequente nas músicas do AF, vide o Neon Bible (Keep the car running, Wasted Hours, Sprawll II), etc.”. Ao viver no modo acelerado como vivemos corremos o risco de deixar realmente o sentimento de lado, e não enxergarmos as coisas que de fato importam. Não é à toa que Neon Bible (My body is a cage) termina com outro grito magistral de redenção dizendo que o corpo (aquele mais suscetível aos desejos carnais destrutivos e neste sentido está associado àquilo que nos corrompe) deve se submeter à nossa mente que segura a chave, ou seja, a resposta está dentro de nós, na nossa capacidade de interpretar o mundo em que vivemos e a nós mesmos, e de vencer essa natureza hostil construída ao longo de nossa história. O carro, esta máquina indestrutível que construímos ao inserir-nos na era moderna, não pode ir, e não vai, onde o sentimento aponta. Em In the backseat (funeral), já estamos cansados de dirigir, mas ainda nos dispomos a correr (stop now before it’s too late), em The Suburbs o carro já se encontra estacionado. O progresso parece ter engolido qualquer capacidade de continuar dirigindo nossas vidas, no entanto permanecemos a dirigir as máquinas do progresso, e não deveríamos nos surpreender pelas emoções estarem mortas. “Não é de se admirar que você se sinta tão estranho. ” (Spraw I). Ele se sente estranho, pois o sentimento, evidentemente ainda não morreu, mas pode estar prestes a morrer.

nos meus sonhos ainda estamos gritando
E correndo pelo jardim

Posteriormente, quase no fim, ele deixa claro como o homem tem se tornado essa criatura desprezível que se é, claro que não do nada, mas através das coisas que aprende, nesse mundo alheio das coisas verdadeiras. É notório o Arcade Fire jamais colocar a mulher, crianças e mesmo idosos no mesmo patamar do homem moderno. Eles não colocam. Acredito eu que seja por afirmação de que é ao homem que é dado o poder, e por isso este se encontra tão mais corrompido que os outros. Em No cars go, ele chama aqueles que ainda sentem – e eu tive um sonho clássico com o seu chamado OMG! (between the click of the light and the start of the dream) – e são estes: mulheres, crianças e idosos, a parcela mais frágil (e mais forte) do contrato social.

E os garotos ficam aprendendo
Um monte de merda egoísta
Até que a garota
Não aceite mais

(Antichrist Television Blues) já nos adianta quem é o homem moderno do The Suburbs e o que este homem faz com os futuros garotos resgatados em Porno no Reflektor. Oh, não, na verdade, Rebellion, antes mesmo, já traz isso. Aliás (Scare your son, scare your daughter). As duas músicas merecem e muito uma análise única e exclusiva, mas não tem como mesmo como não as citar aqui, sem fazer os elos, pois está mesmo tudo interligado. Em Antichrist Television Blues, o foco no homem de bem, é fortíssimo, e o que este homem faz com o que Deus lhe deu.

Caro Deus, eu sou um bom homem cristão
Sou seu garoto, eu sei que você entende.

E a garota, como em Porno, é a vítima central da música. O nosso pássaro na gaiola. O enfeite clássico, a atração máxima, a criança aprisionada. Ao fazer da sua garota uma estrela, ela se torna o reflexo perfeito que é esse deus, esse deus do homem moderno, que muito mais escraviza as pessoas do que as liberta, e isso não é um ataque ao cristianismo, precisamente, mas ao que fizeram do cristianismo. O que homem fez com sua religião e o que fez com as mulheres que deveriam ser suas companheiras e não seus brinquedos. A música mostra, de maneira dolorosa, como não só o “namorado”, mas também como o próprio pai trata da filha.

Caro Deus, você me mandará uma criança?
Oh Deus, você me mandará uma criança?
Porque eu quero colocá-la na tela da TV
Então o mundo poderá ver o que sua verdadeira palavra significa

O homem que pede uma criança em Antichrist television blues, no entanto, não é o mesmo homem que pede por uma filha na música The suburbs. Em The suburbs ele canta, precisamente, o mesmo que canta em Porno, a súplica por um mundo melhor, por um mundo onde sua filha possa ver ainda alguma beleza e não ser vítima desses homens, garotos insensatos e insensíveis de Porno e Antichrist television blues (a súplica infinita de um homem mentiroso, que mente não só para o mundo e para Deus, mas principalmente para si próprio), ele pede a filha, símbolo do seu compromisso com Deus, ao mesmo tempo que pede (inconscientemente ou conscientemente) uma faca, para que possa matá-la. E ele realmente mata, como podemos ver, não só em Porno, mais especificamente – não poderíamos esquecer – em Joan of Arc.

Primeiro eles te amam
Então eles te matam
(*)
Então me diga Senhor, eu sou o Anti-cristo?

Isso tudo nos decepciona, nos magoa, e por vezes até nos imobiliza. Ao final de Porno, Win então confirma que realmente não superou, no entanto, continuamos a seguir em frente... em frente seguimos.

You say love is real
Like a disease
Come on tell me please
I'm not over it.



15.06.2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seguidores

Lyllian Teles. Tecnologia do Blogger.

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *