A sede de existir - Você me ensinou a escrever

dezembro 02, 2016

A sede de existir

pintura by Sarah Joncas

Como é demasiado complicado parar e sentir...

Não deveria, não é? Sentir não requer nenhum trâmite burocrático ou demais confusões sistemáticas, sentir não depende de mais nada apenas que do puro, simples e mágico ato de incomodar-se. Incomodar-se, meus amigos, é do que estamos precisando. Incomodar-nos para então encontrar o nosso lugar. Você está no seu lugar, seu lugar no mundo? Você se sente pertencente ao espaço que ocupa? E não caiamos em reducionismos físicos. Pense grande, sinta grande, ultrapasse sua meta... você se sente pertencente a você mesmo? Perguntas muito difíceis de serem respondidas. Eu pergunto a mim mesma, ao passo que pergunto também a vocês, seja lá quem vocês forem (possam ser, venham a ser.…)

Em meio a um mundo consumido pelo tempo, ficou difícil mesmo sentir. Seguimos correndo e correndo e correndo, criamos o nosso próprio e maior inimigo, e ainda assim o culpamos, afinal, a culpa não poderia ser nossa, né? Cegos, não vemos que nós mesmos somos a fonte de nossos próprios medos, lutamos com o adversário errado, e assim perdemos todas as batalhas. Consequentemente, a guerra continua. E quem diria que derramaríamos tanto sangue, não é mesmo? Todavia, continuamos "firmes e fortes", sangrando eternamente, sem nunca reparar no vermelho predominante de nosso semblante, aliás, desenvolvemos a maquiagem perfeita para estes pequenos defeitos: o dinheiro em nosso bolso, e o (falso) poder em nossas mãos.

Um velho psicanalista já havia suposto, que muito da função do poder material é suprimir o desejo a ponto de dissipá-lo. Taí, a sentença de morte do sentir. Ninguém quer render-se ao desejo, ninguém quer render-se a si mesmo. Vivemos no mundo onde ser você mesmo é uma audácia. A que ponto chegamos? Eu não posso ser eu, e consequentemente, mesmo que inconscientemente, não posso deixar que você seja você, principalmente quando isso implica na minha falsa autenticidade. Esse é, também, o perigo do nosso sistema capitalista pós-moderno; numa época dita moderna éramos o reflexo do que um dia quase fomos (quase verdadeiros), hoje somos o reflexo deste reflexo, e cada vez mais nos encontramos longe do uno, luz da vida e de toda existência de nós mesmos. Nos encontramos fora de nós, imersos numa onda invencível de medo e ganância. Nada mais sensato que justificar o temor do autoconhecimento e da livre aceitação do mais repugnante em nós, com a desculpa do quanto temos orgulho de sermos quem somos, mascarando toda a finitude e incompetência com a pose de um ser jovial, meigo e bem-sucedido. Cada qual com seu carro e suas sacolas!

Há quem diga que somos seres limitados aos olhos da Criação. Há quem cuspa a realidade em nossos ombros ao enfatizarem o quanto nos tornamos pequenos aos olhos de Deus, e o quão distante estamos e permanecemos da sua grandeza. E olha lá que o que eu digo não depende de fé, meu caro amigo, depende de ponto de vista. Seja lá o que deus possa ser para mim ou para você, seja um Todo infinito ou o só o sanduíche que irá comer na próxima lanchonete que encontrar... a pergunta é: nossa condição humana nos limita de conhecer os nossos potenciais espirituais, ou nós criamos as condições que nos limitam continuamente de exercer os nossos potenciais humanos? A humanidade é uma limitação e condição do animal-imediato, ou uma condição da nossa natureza e semelhança com Deus? Seja ela o que for.

Hoje foi um dia muito cheio, digamos assim. Eu poderia dizer que criei todas as condições que me impediram de sentir, de vivenciar a minha relação com o mundo num momento presencial de eu-tu, eu-universo, eu-eu. Talvez eu tenha permanecido na racionalização, na reflexão contínua do não vivido, na relação infinita e desgastante do sujeito-objeto. Eu não sei. Mas, é muito bom parar, perceber a tensão no meu corpo, olhar para dentro e saber... que me sinto (quase) completamente consciente da minha imposição, que sob a luz da minha reflexão eu-isso, poderei enfim voltar a mim mesma e sentir de fato, deixar a ansiedade de nada finalmente ir embora e descansar.

Ao ler essas palavras, já posso sentir que tudo que restou dos cálculos de hoje, foram apesar de dolorosas, grandes conquistas, grandes sucessos, pois, para que eu possa seguir em paz, é necessário dar-me conta do meu distúrbio particular. Como no sintoma do mundo, eu também preciso transfigurar meu desejo n’algum conto que me satisfaça e me dê suporte para continuar. E não, não é reprimindo, não é consumindo, não é tomando o poder, é na exploração da minha capacidade de ser.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seguidores

Lyllian Teles. Tecnologia do Blogger.

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *