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Hoje
o seu pesar cintila nos varais
Usou
as sete vidas e não foi feliz jamais
Toda
imensidão passou pela vida e foi cair na solidão.
Esse
texto se propõe a ser uma interpretação de alguns trechos definitivos da música
Milagreiro do Djavan. Ou melhor, uma tentativa. Creio que seja uma canção um
tanto subjetiva que diz respeito a uma história pessoal. Tais palavras só
entenderá mesmo quem vivenciou. Mas, como ouvinte vai sempre ter suas próprias
conclusões, lá vou eu. Apreciadores da música e da poesia vão sempre
parafrasear e dar seu próprio significado às obras que perpassam pelos encalços
de suas entranhas malabaristas emocionadas.
Comecei
a lembrar dos tempos em que a vida se resumia, para mim, a “viver e viver
intensamente”. É, antes que elimine este propósito, explicarei as razões pelas
quais tal pensamento pode ser um tanto ambíguo. A questão é que há muito se
propaga que deveremos nos jogar no mundo, a existência chama e nos arriscamos a
sofrer de tudo. Não devemos ter medo de nos relacionar com os outros, criar
vínculos, produzir afetos. Viver intensamente significa sair por aí e dizer
“Sim, sim, sim! ”, quase sempre para tudo.
O
lado bom de tomar como lema o “viver intensamente” é, primeiro, que diz
respeito a um paradigma que toma a vida como algo muito grandioso que deve ser
aproveitado, comido, mastigado, amado. Algo realmente vivido. Nos protege de
ser pessoas medrosas, que vivem na lateral da vida, que têm medo de se abrir
para o relacionamento com os outros, que vivem à margem e não sabem. Já o seu
lado ruim é criar pessoas sem critério. O que eu quero dizer com “critério”?
Bom,
costumamos sempre a ver pessoas sofrendo por terem se colocado em risco, riscos
que não queriam correr, riscos que não geraram aprendizado nenhum. É raro algo
na vida não gerar aprendizado e novas formas de se comportar no mundo. Porém,
por vezes passamos muito tempo rígidos numa visão de mundo que caricaturalmente
nos liberta, mas só na caricatura mesmo. Por dentro ainda estamos presos,
presos dentro da visão de mundo que pouco é capaz de enxergar.
Daí
as pessoas insistem em prolongar e perpetuar comportamento que as aprisiona.
Viver intensamente, às vezes, acaba sendo um “não-viver”, ou até mesmo um
“sobreviver” pois gera tanta dor e angústia que o ser em questão acaba apenas
se adaptando, mas nunca é realmente alguém feliz, com a vida e consigo mesmo.
O
critério de que falo, então, constitui fatores de análise que somos capazes de
adotar diante de situações de risco, pessoas de risco, ou dispêndio de energia
sem necessidade. É cientificamente comprovado que nós, seres humanos, bem como
algumas outras espécies de animais, temos predisposições biológicas para
calcular se a energia que estamos gastando vale o objetivo final. O ganho é
maior do que a energia que depositamos na conquista desse propósito? A questão
é que, diferente de animais, nós, reles humanos, nos afetamos muito mais e
somos dotados de emoções conscientes (chamadas sentimentos) graças à capacidade
perceptiva, e assim, todas essas emoções também implicam na realização do
cálculo. O sucesso nem sempre é garantido.
Nossa capacidade de
planejamento, então, se vê corrompida por outros processos biológicos
subjetivos que não conseguimos controlar. A menos que nos dediquemos a nos
conhecer, reconhecer quais os objetivos de vida e quais os resultados que
queremos. Aprender diz respeito a isso também: ser capaz de fazer uma mudança
comportamental que condiz com os nossos objetivos primordiais e se adaptar às
demandas que nos são apresentadas na jornada em prol desse objetivo.
Logo, mais algumas
premissas refutam a supremacia do paradigma tão amado por tantas pessoas –
inclusive eu – do “viver intensamente”, que já não abarca todos os propósitos
adotados por uma pessoa. Porque viver sem discernimento jamais a conduzirá à
essência bela da vida que ela procura. A menos que queiramos sofrer
intensamente para sempre, devemos lançar-nos na vida e viver – como se diz,
mesmo? – Intensamente.
Outra premissa que uso
para ratificar a conclusão à qual chego é: viver de verdade, não necessariamente
é viver intensamente. Me ancorando novamente na biopsicologia, ressalto que o
medo também é uma característica humana adquirida ao longo da história das
espécies que se tornou de uma importância evolutiva imprescindível. Sem o medo
seríamos lançados aos leões sem sequer piscar os olhos. Não estaríamos aqui.
Logo, o medo serve, também, como um dos fatores de critério. Critérios para
delimitar o que é viver e o que não é viver de verdade.
Viver intensamente nos
lança na incerteza certa. Será sempre incerteza. Não temos pena de nossa
integridade, não damos importância ao sagrado em nosso espírito, não
valorizamos a pessoalidade do nosso corpo, fingimos que não temos medo de nos machucar.
É tudo mentira! É certo que um dos valores de sobrevivência e VIVÊNCIA subjetiva humana é narcísica e
naturalmente pessoal. Vide o tão aclamado amor
próprio.
Amor próprio existe
porque valorizamos a nossa vida. Até mesmo quem vive intensamente. Talvez só
tenha se esquecido dos critérios. Talvez tenha definido critérios com base em
suas emoções mais sombrias. Talvez ache que não deva definir critérios e queira
assumir a responsabilidade e a dor que dela decorre. Talvez queira viver o
caos, e o caos é sempre subjetivo. Mas quando isso não é verdade ou não
acontece, só resta um significado: sofrimento. Sofrimento gerado pelo mito do
viver intensamente.
Viver de verdade, então,
diz respeito a escolher a vida e ser responsável pelas próprias escolhas. Você
sente mais “intensamente” as coisas ao seu redor porque selecionou verdades a
dedo para caminhar ao seu lado. Disse não às mentiras. Agora você é capaz de
ser feliz porque não é mais uma vítima do “destino” ou da vida, do caos. Você
não é o caos porque definiu critérios e diretrizes que implicam nas suas ações
e suas ações implicam. Ou seja, tomará cuidado ao se jogar na vida sem análise
crítica do que aquilo pode gerar, psicologicamente falando.
Quando escolhemos viver
de verdade, ao invés de viver intensamente, percebemos o quanto que da vida
está nas nossas mãos, e não mais nas mãos dos outros, não é “o universo que
está contra você”. Você entende que se antes foi assim, é porque você se pôs,
com suas próprias ações, contra você mesmo.
É um princípio fenomenológico
existencial, também, o fato de que só tomamos, verdadeiramente, consciência de
algo quando somos capazes de, efetivamente, mudar o nosso comportamento para um
repertório condizente com a tomada de consciência. Ou seja, às vezes podemos
maturar tudo isso aqui na nossa cabeça e simplesmente não sermos capazes de
realizar nada. Tudo permanece igual, continuamos a perpetuar os mesmos velhos
hábitos e continuamos a culpar os outros pelo nosso fracasso.
Sendo assim, viver
intensamente poderia ser ressiginificado para viver conscientemente. Só sendo
possível assumir essa intensidade genuína quando se conscientiza da vida que
está levando. Ter consciência de si e do mundo é a porta para uma vida
verdadeiramente intensa, não no sentido que se atribui – viver ao leú – mas sim
viver bem, com o resguardo da própria felicidade.
Acredito que a música,
Milagreiro, fala sobre isso. A vida que é feita de ilusão, a ilusão do viver
intensamente que não gerou frutos. O que será que quer dizer, uma pessoa usar
suas sete vidas e não ser feliz uma vez sequer? Encontrar pedaços de
“felicidade”, aqui e ali. Migalhas. É claro que também não mantemos o controle
sobre tudo. Coisas inesperadas acontecem, e nem sempre dependem de nossas
ações, mas isso faz parte, também, da ilusão narcísica que nos faz acreditar
que o mundo gira em torno de nossas vontades, vontades essas que nem sempre são
genuínas.
É necessário
discernimento, também, para qualificar a verdadeira vontade.
O que resta é, percebendo
isto, a ressurreição final: mais um
santo para esculpir é o que lhe vale, para evitar que o rancor suas ervas
espalhem.
O Milagreiro é, nada mais
nada menos, você mesmo. O resto, interprete por si só.
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